Tenho certeza de que você já ouviu a expressão “transtorno
alimentar” e da mesma forma tenho certeza de que você já leu sobre o assunto na
internet (a rede está inundada de reportagens e artigos – confiáveis ou não –
sobre o tema), e posso apostar que você se interessou por este artigo aqui
exatamente porque você tem, ou acha que pode ter algum transtorno alimentar, ou
conhece alguém que foi diagnosticado com essa doença.
“Ah, então o transtorno alimentar é uma doença?” Sim, os
transtornos alimentares são doenças do campo da psiquiatria que precisam de
tratamento tanto medicamentoso quanto terapêutico. A psicanálise pode auxiliar
no tratamento, sim, como veremos adiante.
Como o significado da palavra indica, “Transtorno é sinônimo
de alteração, contratempo, contrariedade e prejuízo.” Então, pensando em termos
de alimentação podemos dizer que seria uma forma, um jeito inadequado, uma
dificuldade (inconsciente! É importante que isso fique bem claro!) de se
alimentar adequadamente que vai causar um desconforto, um prejuízo (para a
saúde física e psíquica), ou seja, terá consequências não benéficas para a
pessoa com essa questão.
Se consideramos ainda que o conceito de “Doença” que
é um conjunto de sinais e sintomas específicos que afetam um ser vivo,
alterando o seu estado normal de saúde”, podemos afirmar que, sim, qualquer
tipo, entre os mais variados, de transtornos alimentares já catalogados pela
medicina psiquiátrica, trata-se de uma doença, grave, e que necessita ser adequadamente
diagnosticada e, tratada.
Podemos, então, afirmar que os transtornos alimentares são
condições de saúde mental que afetam a relação de uma pessoa com a sua alimentação
e o seu peso corporal e sua relação com seu entorno social. São caracterizados
por padrões anormais de comportamento alimentar, pensamentos distorcidos sobre
o corpo e preocupação excessiva com a forma física. Trazem prejuízos à vida funcional
da pessoa e comprometem significativamente a saúde física, mental e social.
Números
Infelizmente o Brasil não possui ainda uma quantidade
significativa de pesquisas nesse campo. Porém, estima-se que não seja muito
diferente do que acontece ao redor do planeta.
Para se ter uma ideia, mais de 70 milhões de pessoas no
mundo estão diagnosticadas com algum tipo de transtorno alimentar. Quem diz é a
Associação Brasileira de Psiquiatria e a informação pode ser encontrada
facilmente no site do Ministério da Saúde.
No Brasil, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que
no mínimo 5% da população possui algum tipo de transtorno alimentar o que
representaria cerca de 10 milhões de pessoas, dados de 2022.
A pandemia de Covid-19 agravou significativamente esse
quadro que já não era bom. Mas todos os estudos referem-se a estatística fora
do Brasil. Por exemplo, uma equipe de pesquisadores liderada por Daniel J.
Devoe, do Mathison Centre for Mental Health, da Universidade de Calgary,
Canadá, realizou uma revisão sistemática examinando a literatura científica
sobre covid-19 e Transtornos Alimentares.
Cinquenta e três estudos foram incluídos nessa revisão
sistemática, totalizando 36.485 pessoas com Transtornos Alimentares. Destas:
3.223 apresentavam anorexia nervosa; 1.203 bulimia nervosa; 722 transtorno de compulsão alimentar periódica;
1.243 outros transtornos alimentares especificados; 126 transtorno alimentar
restritivo/evitativo; 47 transtorno purgativo; 25 síndrome da alimentação
noturna. A média de idade dessas pessoas era de 24 anos com prevalência de 90%
para mulheres.
Apenas os adultos sofrem com esse tipo de transtorno? Infelizmente,
não.
Crianças e adolescentes também engrossam as estatísticas mundiais
como revela um outro estudo mais recente, de fevereiro de 2023, publicado pela
revista eletrônica JAMA Network (The Journal of the American Medical
Association é um periódico médico revisado por pares, publicado 48 vezes por
ano pela American Medical Association. Publica pesquisas originais, revisões e
editoriais cobrindo todos os aspectos da biomedicina) que incluiu 63.181
participantes de 16 países, em que 22% relataram que crianças e adolescentes
apresentavam distúrbios alimentares. A proporção foi ainda mais elevada entre
meninas, adolescentes mais velhos e aqueles com maior índice de massa corporal.
E o mais preocupante é que o estudo, quando menciona crianças e adolescentes
está se referindo a um público que vai dos 6 aos 18 anos! A pesquisa alerta
para o aumento assustador desse tipo de transtorno nas crianças e adolescentes
nos últimos 50 anos.
Segundo o estudo, “a causa dos transtornos alimentares é
muito complexa e, à semelhança de outros transtornos psiquiátricos como a
depressão e a ansiedade, decorre da combinação de diversos fatores de risco. A
prevalência de transtornos alimentares em crianças e adolescentes (11 a 19
anos) tem sido estabelecida entre 1,2% (meninos) e 5,7% (meninas), com
incidência crescente nas últimas décadas. Considerando que a adolescência é um
período de pico de transtornos alimentares e seus sintomas, conhecer e compreender
a proporção de transtornos alimentares entre os jovens é uma questão crucial.”
Um dos maiores problemas que envolvem o diagnóstico de
transtornos alimentares, ainda segundo o estudo “é o fato de algumas crianças e
adolescentes com transtornos alimentares conseguirem ocultar os principais
sintomas da doença e retardar a busca por atendimento especializado devido a
sentimentos de vergonha ou estigmatização.” Ou seja, é bastante provável que os
transtornos alimentares sejam subdiagnosticados e, consequentemente,
subtratados.
Pais, professores, responsáveis pelas crianças ou
adolescentes, e também os profissionais de saúde, devem estar atentos aos
sintomas dos distúrbios alimentares, que incluem comportamentos tais como preocupação
exagerada em fazer dieta para perda de peso, compulsão alimentar, vômitos
autoinduzidos, exercícios excessivos e uso de laxantes ou diuréticos sem que
tenha havido uma prescrição médica. Ou ainda uma percepção equivocada de seu
próprio corpo, por exemplo, a pessoa está excessivamente magra, mas “se
enxerga” gorda e vice-versa também! O indivíduo está visivelmente com excesso
de peso, mas “se vê” magro. Vamos abordar esses casos mais adiante.
Possíveis causas e tipos dos Transtornos alimentar
Os transtornos alimentares, como já dissemos anteriormente,
são doenças psiquiátricas, e ao lado de diversas outras doenças dessa ordem,
estão catalogadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais, da American Psychiatric Association, mais conhecido por DSM-5
(“5” porque ele já está na sua quinta versão).
Mas antes de partirmos para apresentar os tipos de
transtornos alimentares, vamos explicar, afinal, por que motivo uma pessoa
decide comer demais ou de menos (grosso modo é disso que se trata, mas existem
também outros tipos de transtornos que envolvem o consumo de produtos que não
são alimentos, como veremos logo mais).
Para a psicanálise, os distúrbios relacionados à
alimentação geralmente surgem como uma espécie de defesa inconsciente da pessoa
contra algo que nem ela é capaz de definir com clareza, que chamamos de angústia.
E o que provoca a angústia? Geralmente a angústia é gerada por um conflito
inconsciente dentre o desejo de realizar algo que a própria pessoa entende como
“errado”, ou que a sociedade entende como errado, ou a Igreja, a religião, seus
pais ou todos ao mesmo tempo, e que a pessoa acredita que se realizar esse
desejo isso poderá “manchar” a imagem idealizada que ela tem de si mesma, ou
que ela acredita que as pessoas em volta dela (amigos, pais, membros de alguma
comunidade da qual ela faz parte) têm dela. Essa imagem idealizada que a
maioria das pessoas tem, de ser boa, correta, sem defeitos provoca angústia
quando confrontada por pensamentos e desejos de fazer algo que poderia abalar
essa imagem.
Por exemplo: uma jovem por volta de seus 16 anos, que tem
uma educação excessivamente rígida em relação à sexualidade (no sentido de
proibições, repressões dos pais ou da igreja que frequenta) pode desenvolver
fantasias através de pensamentos ou até mesmo sonhos em que o sexo é uma
constante. Isso causa a ela uma angústia que ela pode tentar aplacar de
diversas formas: consumo excessivo de álcool, outras drogas, consumo de roupas
ou outros objetos sem necessidade e, da mesma forma, a ingestão
descontrolada de comida. Ou, o oposto, a recusa em comer. Mas,
repito, isso não acontece de forma racional. Ou seja, a pessoa não pensa: vou
comer, comer, comer porque tenho “maus pensamentos” que preciso manter
escondidos de tudo e de todos. Não. Quem sofre de transtornos alimentares
(ou de quaisquer outros tipos de transtornos não alimentares) simplesmente
sente uma angústia inexplicável, aparentemente sem uma razão específica, que
precisa ser acalmada, digamos assim, de alguma forma. Uma delas pode ser através
de um dos transtornos alimentares descritos a seguir.
Quais são os tipos de transtornos alimentares mais
conhecidos?
Os mais conhecidos e catalogados no DSM-5 são também
os mais prevalentes, ou seja, que possuem mais notificações médicas e,
consequentemente são os que mais atingem a população como um todo: Compulsão
Alimentar, Anorexia e Bulimia.
Compulsão alimentar - Em primeiro lugar é necessário
diferenciar a compulsão alimentar daquele exagero eventual que podemos cometer
durante uma festa de fim de ano, um casamento, um aniversário, por exemplo, ou
diante de um prato de nossa preferência que a mamãe ou a vovó preparou para nós
com todo o carinho. Exagerar nesses casos, não configura compulsão alimentar.
Para se caracterizar como compulsão alimentar alguns
“ingredientes” devem estar presentes nessa “receita”. Um deles é a ingestão de
alimentos muito acima do normal, acima do necessário, de forma incontrolável
pelo indivíduo, que pode até se iniciar durante um evento social e se prolongar
após a pessoa chegar em casa. Por exemplo, “um indivíduo pode começar a comer
compulsivamente em um restaurante e depois continuar a comer quando volta para
casa. Lanches contínuos em pequenas quantidades de alimento ao longo do dia não
seriam considerados compulsão alimentar”, explica o DSM-5. Além da falta de
controle e da quantidade excessiva, outro fator relevante é a falta de critério
do que comer. O compulsivo alimentar vai misturar doces e salgados, por
exemplo, pode misturar arroz e feijão com torta de maçã, sorvete com coxinha,
não importa, não existe uma escolha racional. Vai consumir o que estiver disponível,
o que encontrar em armários ou na geladeira.
Outra característica fundamental é a vergonha em comer
compulsivamente. A pessoa o fará escondido, longe dos familiares ou de
conhecidos, tentará esconder vestígios do que foi consumido. Se sentirá muito mal
se for pega em flagrante. “Indivíduos com transtorno de compulsão alimentar
geralmente sentem vergonha de seus problemas alimentares e tentam ocultar os
sintomas”, diz o DSM-5, o que dificulta muitas vezes o diagnóstico. Um
agravante da compulsão alimentar são os métodos compensatórios que a pessoa
utiliza para tentar minimizar os efeitos nocivos como ganho de peso: uso de
laxantes e provocar o próprio vômito, o que nos leva a um outro transtorno
bastante conhecido.
Bulimia nervosa – Um dos fatores diagnósticos da
bulimia é a presença da compulsão alimentar. Outros são os comportamentos
compensatórios como já dissemos, uso de laxantes e provocar o próprio vômito. O
bulímico faz isso mais de uma vez por semana, às vezes todos os dias, às vezes
em todas as refeições, nos casos mais graves. Existe uma insatisfação, muitas
vezes injustificada, com seu próprio corpo. Porém, muitas vezes a compulsão
alimentar pode ocorrer em razão de a pessoa estar de fato acima do peso, mas
não necessariamente obesa (aliás, é bom que se diga que a obesidade não
está no rol dos transtornos alimentares, nem das doenças psiquiátricas, ou
seja, obesidade não faz parte do rol de doenças catalogadas pelo DSM-5, embora
a medicina a considere uma doença que, da mesma forma, precisa ser tratada).
O maior risco da bulimia para o indivíduo é o de suicídio.
De acordo com o DSM-5 “a avaliação completa de indivíduos com esse transtorno
deverá incluir determinação de ideação e comportamentos suicidas, bem como
outros fatores de risco para suicídio, incluindo história de tentativas de
suicídio.” A ideação suicida se apresenta para pessoas com esse tipo de
transtorno justamente porque ela não vê a curto prazo uma solução ou uma
melhora. Como ela se sente infeliz e culpada, com baixíssima autoestima a maior
parte do tempo, muitas vezes vai pensar que acabar com sua própria vida é
igualmente acabar com aquele problema.
Anorexia Nervosa – Aqui é a ingestão exageradamente
restritiva de alimentos que caracteriza esse transtorno. Apesar disso, todos os
fatores que compõem a compulsão alimentar, como a bulimia, estão presentes, por
exemplo, a pessoa pode até se alimentar para cumprir um protocolo social, por
exemplo, um almoço em família, ou um evento social com amigos, que funciona
como um, digamos, “disfarce” do problema, e imediatamente à ingestão ela vai
provocar o vômito sem que ninguém perceba.
O que leva muitas vezes familiares e amigos a desconfiar que
algo não vai bem é a excessiva perda de peso da pessoa anoréxica. Mas ela vai
negar que esteja magra e, de fato, ela não se vê magra como já dissemos. O
perigo de a anorexia se manifestar em adolescentes, por exemplo, (em crianças,
é muito raro), é o comprometimento do desenvolvimento corporal e psíquico. As
pessoas com anorexia têm verdadeira obsessão em se pesar, em conferir suas
medidas com frequência e não aceitam que estejam se prejudicando ou se tornando
subnutridas. Esse comportamento com frequência compromete o tratamento porque a
pessoa simplesmente não acredita que está doente. Pelo contrário! O anoréxico
enxerga sua perda de peso como resultado de sua grande disciplina e
autocontrole.
Pica – Caracteriza-se pela ingestão de produtos que
não são nem alimentos nem nutritivos, por exemplo, fezes, terra, papel, sabão,
tecido, cabelo, fios, giz, talco, tinta, cola, metal, pedras, carvão vegetal ou
mineral, cinzas, detergente ou gelo, em grandes quantidades. Algumas crianças
quando estão começando a engatinhar ou a andar e estão conhecendo o mundo, não
raro comem um cocô de cachorro que encontram pelo caminho, ou uma porção de
terra, ou um pedaço de sabonete quando já tomam seu banho sozinhos na
banheirinha. Esses eventos não são transtornos alimentares. Esse
transtorno, também conhecido como alotriofagia, é chamado Pica ou
síndrome de Pica devido a uma espécie de pássaro conhecida como Pica Pica. Este
pássaro, também chamado de pega-rabuda, se alimenta de quase tudo o que vê pela
frente...
Essa síndrome pode vir acompanhada de outras doenças como
transtorno do espectro autista e esquizofrenia, principalmente quando
acomete adultos, e, segundo o DSM-5 “pode estar associada a tricotilomania
(transtorno de arrancar o cabelo) e transtorno de escoriação
(skin-picking) e pode igualmente estar associada ao transtorno alimentar
restritivo/evitativo”, que veremos a seguir.
Transtorno alimentar restritivo/evitativo – Parecido
com a anorexia, esse distúrbio alimentar leva à perda de peso excessiva, porém,
as razões se diferenciam porque nesse caso um agravante é que se trata da
criança na primeira infância (do 0 aos 6 anos) que se recusa a comer
determinados alimentos seja por sua aparência, cor, textura, odor, temperatura
ou paladar. Não se trata de uma recusa pontual que eventualmente e normalmente
as crianças menores de 6 anos podem fazer. Trata-se de uma recusa persistente
que leva não só à perda evidente de peso como à uma deficiência nutricional
grave. Em crianças mais velhas e adolescentes, a evitação e a restrição
alimentar podem estar associadas a dificuldades emocionais mais generalizadas
como ansiedade depressão.
De acordo com o DSM-5 “crianças com transtorno alimentar
restritivo/evitativo podem ser irritadiças e difíceis de consolar durante a
amamentação ou parecer apáticas e retraídas”. Em alguns casos, a relação mãe e
filho pode contribuir para o problema de alimentação do bebê (por exemplo
quando a mãe apresenta o alimento de maneira inapropriada ou interpreta o
comportamento do bebê como um ato de agressão ou rejeição). A falta de
nutrientes adequados pode exacerbar as características associadas como
irritabilidade, atrasos no desenvolvimento e contribuir ainda mais para as
dificuldades de alimentação.
Transtorno de Ruminação – Ruminar é tornar a mastigar
ou a mascar os alimentos já mastigados e engolidos que voltam do estômago à
boca. É exatamente esse ato, que não tem origem em problemas gastrointestinais,
que caracteriza esse tipo de transtorno alimentar. Porém, para ser
diagnosticado é necessário que ele aconteça no mínimo durante um mês. Essa é a
característica essencial do transtorno de ruminação. Segundo o DSM-5 “o
alimento previamente deglutido que já pode estar parcialmente digerido é
trazido de volta à boca sem náusea aparente, ânsia de vômito ou repugnância. O
alimento pode ser remastigado e então ejetado da boca ou novamente deglutido.”
Outra característica que deve estar presente é a frequência:
deve ocorrer pelo menos várias vezes por semana, em geral todos os dias. É mais
prevalente em indivíduos com alguma deficiência intelectual e em bebês que
estejam amamentando. Quando acontece em adolescentes ou adultos, geralmente
sentem vergonha, tentam esconder, principalmente porque é algo incontrolável,
como aliás, todo transtorno psíquico e no caso aqui, alimentar. De acordo com o
DSM-5 “nos lactentes, bem como em indivíduos mais velhos com deficiência
intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) ou outros transtornos
do neurodesenvolvimento, o comportamento de regurgitação e ruminação parece
ter uma função calmante e estimulante semelhante à de outros comportamentos motores
repetitivos, como balançar a cabeça ritmicamente”.
Síndrome do comer noturno – Sabe aquela fugidinha da
cama para a cozinha para assaltar a geladeira durante a noite? Se for algo
eventual, talvez não haja grandes consequência, mas esses “assaltos” à geladeira,
para o DSM-5 podem significar problema à vista. Segundo o Manual essa síndrome
faz parte da categoria Outro Transtorno Alimentar juntamente com outros
que não reúnem os critérios para um transtorno alimentar específico ou não há
informações suficientes para que seja feito um diagnóstico mais específico.
Mas os tipos de transtornos alimentares não terminam por
aqui. Existem mais alguns que, apesar de ainda não estarem catalogados pelo Manual
Diagnóstico de Transtornos Mentais causam danos à saúde e os profissionais da
saúde como um todo já procuram tratá-los da melhor forma possível. Vamos a
eles.
Ortorexia Nervosa - Caracteriza-se pela fixação por
uma alimentação exageradamente saudável tornando-se uma obsessão doentia porque
a pessoa só consegue se alimentar com o alimento biologicamente puro, o que,
obviamente, acarreta restrições alimentares significativas. O indivíduo que
sofre com essa síndrome possui uma preocupação exagerada com a qualidade dos
alimentos, a pureza da dieta (livre de herbicidas, pesticidas e outras
substâncias artificiais) e o uso exclusivo de “alimentos politicamente corretos
e saudáveis”.
Embora exista um caráter positivo cultivado por uma
alimentação saudável, a área da saúde já entende que determinados
comportamentos supostamente “saudáveis” podem levar ao prejuízo da saúde. A
consequência da ortorexia é que essas pessoas se privam, muitas vezes,
de nutrientes essenciais ao bem-estar e à qualidade de vida. Além disso, tendem
a se isolar socialmente, pois adquirem uma série de restrições alimentares que
impedem o simples convívio social rotineiro. Não se trata de comer saudável, e
sim de uma situação extrema e obsessiva em que a alimentação passa a dominar seus
pensamentos e seus comportamentos. Ou seja, a pessoa acaba se isolando
socialmente por não encontrar à sua disposição os produtos que acredita serem
“puros” o suficiente para serem consumidos por ela.
Por ser um transtorno descoberto recentemente não existem
estudos significativos nem estatísticas confiáveis. Entretanto, já se sabe que
as consequências no estado nutricional de ortoréxicos são as mesmas que ocorrem
a partir de uma alimentação inadequada como desnutrição, anemias, hiper ou
hipovitaminoses, carência de nutrientes essenciais, hipotensão e osteoporose.
Em casos mais avançados da doença, a própria carência de vitaminas pode
acarretar alterações de comportamento que acentuam ainda mais a obsessão por
alimentos saudáveis. É aquela velha máxima: nem tanto ao mar, nem tanto à
terra. Tudo que é exagerado para mais ou para menos resulta, na maioria dos
casos, em transtornos...
Vigorexia – Também conhecida como Complexo de
Adônis ou Transtorno Dismórfico Muscular a principal característica desse
distúrbio é a percepção distorcida da imagem corporal e depreciação do próprio
corpo. Possui prevalência acentuada no sexo masculino, porém pode atingir
qualquer pessoa independentemente de classe social ou etnia. Adônis era o deus
grego da Beleza, o correspondente a Vênus para a beleza feminina, que possuía medidas
e forma física consideradas perfeitas. E desejar ser bonito ou ter um corpo que
você olha e gosta do que vê não é necessariamente uma doença. Entretanto, esse
distúrbio leva a pessoa a uma busca obsessiva por uma perfeição inalcançável e por
exercícios musculares que teoricamente deveriam levá-lo a atingir seus
objetivos que nunca são atingidos. Como consequência, essa busca incontrolável
pelo corpo com músculos superdefinidos traz consigo a diminuição do
investimento na vida emocional, social e ocupacional por conta das longas horas
investidas em musculação dentro de academias. O grande objetivo é aumentar cada
vez mais a sua massa muscular e diminuir ao máximo a porcentagem de gordura do
corpo, o que pode levar o corpo a extremos limites de exaustão. Muitas vezes o
resultado nunca é considerado suficiente, o que leva a pessoa a ter crises de
ansiedade ou depressão, e até mesmo distúrbios físicos como por exemplo,
amenorreia (falta de menstruação) nas mulheres e disfunção erétil nos homens. Em
geral, pessoas com esse tipo de distúrbio simplesmente eliminam de sua dieta
nutricional todo tipo de carboidrato e passam a consumir anabolizantes para
“turbinar” seus treinos, colocando sua vida em risco, sem falar nos prejuízos
sociais que tudo isso acarreta. Esse transtorno também ainda não está
catalogado pelo DSM-5.
Fatorexia – É considerado o distúrbio oposto à
anorexia no sentido de que nesse caso a pessoa está obesa, segundo os padrões
dos índices de IMC (Índice de Massa Corporal – um cálculo simples para
saber se a pessoa está ou não no peso ideal segundo critérios médicos) utilizados
pela sociedade médica em geral, porém, ela não percebe, não se vê assim, a
percepção dela é que ela está muitos quilos abaixo daquilo que o espelho
mostra. O perigo dessa percepção distorcida de seu próprio corpo é que não se
sabe até onde sua obesidade poderá chegar já que a pessoa não se vê doente, não
procura e nem aceita ajuda médica ou psicológica. As consequências adversas
para a vida da pessoa que carrega esse distúrbio, que também ainda não está no
Manual DSM5, são inúmeras. Outro nome para esse transtorno é megarexia.
Drunkorexia – Também sem catalogação do DSM-5 esse
distúrbio nada mais é do que o consumo de álcool em substituição a qualquer
tipo de alimentação. É um jeito mais “bonitinho”, muito divulgado pela mídia,
de se falar em alcoolismo. Mas na verdade, nada mais é do que isso: alcoolismo.
Todo alcoólatra troca a comida pela bebida e é justamente isso que o
drunkoréxico faz, embora a justificativa seja não engordar: não me alimento com
comida para não engordar então eu bebo em vez de. Resultado? Viro alcoólatra.
Basicamente é isso. Claro que as justificativas do indivíduo dependente de
álcool podem ser um pouco diferentes do drunkoréxico. Este justifica a ingestão
do álcool no lugar da alimentação normal porque está em busca do corpo
perfeito, magro, segundo seus próprios critérios ou aqueles que ele julga que a
sociedade exige e que ele deve cumprir. Só por isso esse distúrbio aparece na
lista de transtornos alimentares. Mas no fundo, sempre que alguém deseja
se entorpecer com algum tipo de droga é porque não consegue aceitar a realidade
como ela se apresenta na sua vida.
Como a psicanálise pode ajudar no tratamento desses
transtornos?
Primeiro é preciso deixar claro que a psicanálise não faz
diagnóstico de doenças psiquiátricas como por exemplo os inúmeros transtornos
sejam eles alimentares ou não. Ou seja, se você após ler este artigo se
identificou com algum dos TA descritos muito sucintamente, diga-se de passagem,
já que nosso objetivo aqui não é esgotar o assunto de forma alguma, sugiro que
procure um médico psiquiatra. Este sim, é o profissional preparado tanto para diagnosticar
doenças psiquiátricas, que os transtornos alimentares são, como medicar se for
o caso.
Acontece que apenas estar medicado (e isso vale para
transtornos de ansiedade, depressão e outros) não resolve. Ajuda. Mas não
resolve. Então, se o seu psiquiatra for de fato um bom profissional muito
provavelmente ele vai sugerir, indicar que você procure uma terapia.
E aí que a psicanálise entra.
Se você já leu meu outro artigo sobre Psicanálise, (www.guiadaalma.com), você já sabe que a matéria prima com a qual um
psicanalista trabalha é o Inconsciente do paciente.
Partindo dessa premissa não espere que o psicanalista vá
orientá-lo sobre reeducação alimentar, mudanças de hábitos alimentares ou algo
similar. Não. Isso é assunto para nutricionistas, nutrólogos e sim, se você for
diagnosticado com algum dos TA descritos aqui deve procurar ajuda desses
profissionais também. Não é novidade que TA devam ser tratados
multidisciplinarmente.
O que o psicanalista vai fazer então? De forma muito
simplificada posso afirmar que cabe ao psicanalista ajudar o paciente a
perceber, identificar, reconhecer aquilo que o faz sofrer. Lembra quando
falamos da angústia? Veja, os TA nada mais são do que a ponta do iceberg,
aquilo que está aparente, aquilo que é possível ver. Mas o que levou o sujeito
a desenvolver essa doença? É esse garimpo emocional que o psicanalista fará
junto com o paciente até que aquela angústia desconhecida deixe de ser um tesouro
oculto e passe a ser algo que o paciente consegue lapidar, polir no seu dia a dia.
Falando assim parece simples. Mas não é. Por quê? Porque é o desconhecer o que causa
sofrimento, e que leva ao desenvolvimento dessas doenças, que traz dor ao
paciente. Mas chegar até o veio precioso do ouro escondido por debaixo de
várias camadas de terra (defesas) daquilo que foi a origem de tudo leva tempo.
Mas não é só isso. Mesmo que o paciente passe a identificar
o motivo de seu sofrimento, será que ele deseja de fato se livrar dele? Essa é
a pergunta de um milhão de dólares! Às vezes a dor conhecida que aprisiona o
sujeito naquele lugar de sofrimento causa menos medo do que a liberdade
desconhecida. É o que eu chamo de “desconforto confortável”.
Sem contar que, geralmente, num primeiro movimento, o
paciente vai identificar a causa de seu sofrimento como sendo atribuída a um
outro. E até ele conseguir perceber a sua parcela naquilo do que se queixa
(como diria Freud) vai um bom tempo de sessões onde quem faz a “análise” é o
próprio paciente. O psicanalista acolhe, escuta, pontua, mas é o paciente que
ao longo das sessões vai percebendo que aquilo que ele diz que o faz sofrer é
justamente aquilo do qual ele não quer abrir mão.
Sim, é o tal do desconforto confortável.
No caso específico dos TA a psicanálise não ignora os
fatores socioculturais que têm levado as pessoas a desenvolverem cada vez mais
esse tipo de transtorno, onde o corpo ocupa um lugar prioritário em detrimento
de outros aspectos da vida humana inclusive do próprio sentido da vida.
Como diria uma historiadora e professora brasileira chamada
Mary Del Priore, que defende a ideia de que hoje a história das mulheres,
principalmente, passa pela história de seus corpos e com humor, observa:
“Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em
salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da desgraça da rejeição
social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a balança e o espelho.”
Finalizando, gostaria de reproduzir uma fala da renomada
psicanalista Marina Ramalho Miranda, da SBPSP (Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo), numa entrevista ao blog dessa organização que disse:
“Será o psicanalista que irá oferecer uma escuta que se
concentra na investigação do que não pôde ser dito ou do que não pôde ser
ingerido (ou absorvido em excesso), do que não aparece (ou do que desnuda), do
que está interditado (ou do que transborda) permanecendo desconhecido e
estranho à compreensão do paciente, que por sua vez se alivia ao descobrir que
seus sintomas não serão vistos como doença e sim como sinais indicativos de que
algo muito sério aconteceu em algum momento de sua vida, alterando o rumo de
desenvolvimento a ser seguido. A(o) paciente fala pelo corpo e com o corpo. O
comer o nada ou o tudo devorar, o vomitar e expurgar são tomados como pistas a
serem seguidas ou como rastros de conteúdos emocionais brutos, contraditórios,
que entraram intrusivamente em seu interior e pedem para serem remastigados”.
E esse processo de “remastigação” pode ser feito através da psicanálise
muito mais do que por outras terapêuticas comportamentais. Esta é também a
percepção que desenvolvi ao longo de toda minha experiência clínica.
Texto originalmente publicado no site Guia da Alma em 12 de julho de 2023
https://guiadaalma.com.br/tipos-de-transtornos-alimentares/