terça-feira, 10 de maio de 2011

Uma das filhas de Walkiria

Walkiria tem uma filha, mas não tem certeza. É que essa filha toma umas atitudes estranhas, que não são comuns filhos tomarem. Por exemplo: ela NUNCA telefona pra saber como Walkiria está. Ela NUNCA vai à casa de Walkiria para uma visita, assim, só pra ver a mãe, se está mais magra, mais gorda...Ela NUNCA convida a mãe para ir à casa dela, assim, tomar um chá, um café, um porre, ou para um passeio, jogar conversa fora, qualquer coisa que normalmente as filhas fazem com suas mães, principalmente depois que se casam. Ah! essa filha é casada. Quando solteira...bem, essa filha tem história para anos de divã. Mas é filha, seja lá como for, foi gerada dentro de um casamento, não foi fruto de um "deslize", Walkiria não se casou grávida, Walkiria ficou feliz quando soube que estava grávida...Walkiria ama essa filha, apesar de tudo. Walkiria se lembra até hoje, em detalhes, da emoção de abrir o envelope na saída do laboratório com o resultado do exame de gravidez. Walkiria lembra que ficou tão feliz e, ao mesmo tempo, triste porque não tinha ninguém conhecido ali na rua pra contar, que correu pro prédio da Joven Pan, na Paulista, onde trabalhava um amigo seu dos tempos da faculdade, amigo, confidente...e Walkiria lembra que dentro do elevador, olhou para o primeiro que viu pela frente e falou: acabei de descobrir que estou grávida, toda sorridente, e a pessoa ficou olhando com cara de paisagem, sem entender nada, mas Walkiria nem ligou. Estava feliz. É uma emoção, pensava Walkiria, que só sabe quem passa. Assim, que fica feliz. O amigo de Walkiria vibrou, abraçou, cumprimentou. Walkiria foi pra casa. Queria falar com a mãe, com o marido. E então, começaram as decepções: ao contrário do que ela imaginava, sua mãe não ficou feliz. Passou-lhe um sermão, disse que era muito cedo pra ter filho, onde já se viu, nem fazia um ano que estava casada e já foi assim engravidando.....Walkiria murchou. Depois, a avó curtiu a neta. Mas no começo foi contra. À noite, outra punhalada. O marido olhou bem pra ela e falou: - Mas se vc quiser tirar tudo bem. Walkiria definhou. Talvez, ali, entre outras coisas, Walkiria tenha começado a morrer um pouco. Mas mesmo assim, ela sabia que seria uma menina. Naquela época o exame de ultrassom não era tão frequente nem tão exato como hoje em dia, dificilmente se saberia o sexo do bebê durante a gravidez, mas Walkiria tinha uma certeza secreta: aquele serzinho gerado ali dentro da sua barriga era uma menina. Uma tarde solitária - como tantas que Walkiria teve durante sua gravidez - ela decidiu escolher um nome para o bebê. Folheou uma Bíblia, no Antigo Testamento (na verdade, ela não sabe por que fez isso, mas foi assim que escolheu o nome da sua filhota) e lá estava. Decidiu e quando Walkiria decidia, decidido estava. O marido achava que seria um menino e cobrava um nome masculino. Walkiria não imaginava isso. Tinha certeza de que seria uma menina. Walkiria não teve uma gravidez feliz porque seu marido nunca ligou muito para o fato, pelo contrário, dizia claramente que achava tudo aquilo muito chato e que ficaria pior depois que "aquilo", como ele se referia à filha, viesse para o lado de fora. Um dia, depois de muito beber, o sujeito bateu em Walkiria e disse mais alguns nomes "bonitos" para "aquilo" que ela trazia dentro de si e então Walkiria decidiu: assim que minha filha nascer, me separo dele. Quando a menina nasceu Walkiria queria morrer. Não por causa da criança, aliás, por ela, Walkiria sobreviveu, mas Walkiria conta que ainda sob efeito da anestesia, ouviu sua sogra e seu sogro comentarem com o marido que "infelizmente" não era um menino como eles queriam, mas estavam conformados porque pelo menos ela era normal e saudável. Walkiria tinha agora um tesouro nas mãos que precisava ser protegido. Parecia que além dela ninguém mais se interessava por aquela criança.
Seis meses depois, mais um arroubo de violência da criatura insana e Walkiria arrumou as malas e saiu pra nunca mais voltar, com sua riqueza no colo. Passado algum tempo, o agora ex-marido a procurou e fez uma proposta indecente: que ela entregasse a menina (que era como ele se referia à criança) para a avó materna e que eles tentassem novamente ter um relacionamento sem filhos por perto. Walkiria não topou, é claro.
Anos depois, já em outro casamento, Walkiria teve novamente problemas de rejeição à sua filha. O segundo marido também não facilitou muito a vida delas e Walkiria ficava dividida, mas nunca abandonou a pequena. Anos mais tarde, acabou sucumbindo às pressões e também por causa de outros fatos, e se separou também desse marido porque se sentia infeliz por ver a filha infeliz, entre outros motivos.
Só que, ao contrário do que parecia, a filha foi se afastando, se afastando...ficou agressiva, obsessiva e Walkiria cada vez mais entendia menos o que estava acontecendo.
A filha se casou, e agora elas estavam assim: como duas estranhas. Walkiria tinha a impressão de que para sua filha (filha?) era como se ela não existisse. Sua filha (filha?) a ignorava solenemente. E Walkiria não entendia o motivo. Já estava com mais de 50 anos, a filha com quase 30...imaginava que o amadurecimento as aproximasse. Mas para que isso acontecesse era preciso que ambas estivessem maduras. E não era o caso.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Sobre perfeccionismo, erros e culpa


Segue texto de Antônio Roberto Soares (*) sobre "A Culpa e a Busca da Perfeição", enviado a mim pelo meu professor e terapeuta grupal, Carlos Aníbal, do Instituto Luz.

 Por detrás de nossas tristezas e frustrações, de nossas insatisfações na vida, de nossos tédios e angústias, está um sentimento, o mais arraigado em nosso comportamento e responsável por grandes sofrimentos psicológicos, que é o sentimento de culpa. O sentimento de culpa é o apego ao passado, é uma tristeza por alguém não ter sido como deveria ter sido, é uma tristeza por ter cometido algum erro que não deveria ter cometido. O núcleo do sentimento de culpa são estas palavras: "Não deveria...". A culpa é a frustração pela distância entre o que nós fomos e a imagem de como nós deveríamos ter sido. Nela consiste a base para a auto-tortura. Na culpa, dividimo-nos em duas pessoas: uma real, má, errada, ruim, e uma ideal, boa, certa e que tortura a outra. Dentro de nós processa-se um julgamento em que o Eu ideal, imaginário, é o juiz e o Eu real, concreto, humano, é o réu. O Eu ideal sempre faz exigências impossíveis e perfeccionistas. Assim, quando estamos atormentados pelo perfeccionismo, estamos absolutamente sem saída. Como o pensamento nos exige algo impossível, nunca o nosso Eu real poderá atendê-lo. Este é um ponto fundamental.
                  
Muitas pessoas dedicam a sua vida a tentar realizar a concepção do que elas devem ser, em vez de se realizarem a si mesmas. A diferença entre auto-realização e realização da imagem de como deveríamos ser é muito mais importante. A maioria das pessoas vive apenas em função da sua imagem ideal e este é um instrumento fenomenal para se fazer o jogo preferido do neurótico: a auto-tortura, o auto aborrecimento, o auto-castigo, a autopunição, a culpa.

Quanto maior for a expectativa a nosso respeito, quanto maior for o modelo perfeccionista de como deve ser a nossa vida, maior será o nosso sentimento de culpa. A culpa é a tristeza por não sermos perfeitos, é a tristeza por não sermos Deus, por não sermos infalíveis; é um profundo sentimento de orgulho e onipotência; é uma incapacidade de lidar com o erro, com a imperfeição; é um desejo frustrado; é o contato direto com a realidade humana, em contraste com as suas intenções perfeccionistas, com os seus pensamentos megalomaníacos a respeito de si mesmo. E o mais grave é que aprendemos o sentimento de culpa como virtude!
A culpa sempre se esconde atrás da máscara do auto-aperfeiçoamento como garantia de mudança e nunca dá certo. Os erros dos quais nos culpamos são aqueles que menos corrigimos. A lista de nossos "pecados" no confessionário é sempre a mesma. A culpa, longe de nos proporcionar incentivo ao crescimento, faz-nos gastar as energias numa lamentação interior por aquilo que já ocorreu, ao invés de as gastarmos em novas coisas, novas ações e novos comportamentos. Por isto mesmo, em todas as linhas terapêuticas, este é um sentimento considerado doentio. Não existe nenhuma linha de tratamento psicológico que não esteja interessado em tirar dos seus pacientes o sentimento de culpa. A culpa é um auto-desprezo, um auto-desrespeito pela natureza humana, por seus limites e pela sua fragilidade. A culpa é uma vingança de nós mesmos por não termos atendido a expectativa de alguém a nosso respeito, seja esta expectativa clara e explícita, ou seja uma expectativa interiorizada no decorrer da nossa vida. Por isto é que se diz que, ao nos sentirmos culpados, estamos alienados de nós mesmos, e a nossa recriminação interna não é, nem mais nem menos, do que vozes recriminatórias dos nossos pais, nossas mães, nossos mestres ou outras pessoas que ainda residem dentro de nós.

Mas aquilo que nos leva a esse sentimento de culpa, aquilo que alimenta esta nossa doença auto-destrutiva, são algumas crenças falsas. Trabalhar o sentimento de culpa é, primordialmente, descobrir as convicções falsas que existem em nós, aquelas verdades em que cremos e que são errôneas, e nos levam a este sentimento. A primeira delas é a crença na possibilidade da perfeição. Quem acredita que é possível ser perfeito, quem acha que está no mundo para ser perfeito, quem acha que deve procurar na sua vida a perfeição, viverá necessariamente atormentado pelo sentimento de culpa. A expectativa perfeccionista da vida é um produto da nossa fantasia, é um conceito alienado de que é possível não errar, que é possível viver sem cometer erros.

Quanto maior for a discrepância entre a realidade objetiva e as nossas fantasias, entre aquilo que podemos nos tornar através do nosso verdadeiro potencial e os conceitos idealistas impostos, tanto maior será o nosso esforço na vida e maior a nossa frustração. Respondendo a esta crença opressora da perfeição, atuamos num papel que não tem fundamento real nas nossas necessidades. Nos tornamos falsos, evitamos encarar de frente as nossas limitações e desempenhamos papéis sem base na nossa capacidade. Construímos um inimigo dentro de nós, que é o ideal imaginário de como deveríamos ser e não de como realmente somos. Respondendo a um ideal de perfeição, nós desenvolvemos uma fachada falsa para manipular e impressionar os outros.

É muito comum, no relacionamento conjugal, marido e mulher não estarem amando um ao outro e, sim, amando a imagem de perfeição que cada um espera do outro. É claro que nenhum dos parceiros consegue corresponder a esta expectativa irreal e a frustração mútua de não encontrar a perfeição gera tensões e hostilidades, num jogo mútuo de culpa. Esta situação se aplica a todas as relações onde as pessoas acreditam que amar o outro é ser perfeito. Quando voltamos para nós exigências perfeccionistas, dividimo-nos neuroticamente para atender ao irreal. Embora as pessoas acreditem que errar é humano, elas simplesmente não acreditam que são humanas! Embora digam que a perfeição não existe, continuam a se torturar e a se punir e continuam a torturar e a punir os outros por não corresponderem a um ideal perfeccionista do qual não querem abrir mão.

Outra crença que nos leva à culpa, esta talvez mais sutil, mais encoberta e profunda, é acreditarmos que há uma relação necessária entre o erro e a culpa, é a vinculação automática entre erro e culpa. Quase todas as pessoas a quem temos perguntado de onde vêm os seus sentimentos de culpa, nos respondem taxativamente que vêm de seus erros. Acreditamos que a culpa é uma decorrência natural do erro, que não pode, de maneira alguma, haver erro sem haver culpa. Se acreditamos nisto, estamos num problema insolúvel. Ou vamos passar a vida inteira tentando não errar para não sentirmos culpa - e isto é impossível porque sempre haverá erros em nossa vida - ou então passaremos a vida inteira nos sentindo culpados porque sempre erramos. Essa vinculação causal entre erro e culpa é profundamente falsa. A culpa não decorre do erro, mas da maneira como nos colocamos diante do erro; vem do nosso conceito relativo ao erro, vem da nossa raiva por termos errado. Uma coisa é o erro, outra coisa é a culpa; erros são erros, culpa é culpa. São duas coisas distintas, separadas, e que nós unimos de má fé, a fim de não deixarmos saída para o nosso sentimento de culpa. O erro é o modo de se fazer algo diferente, fora de algum padrão.

O que é chamado erro é a saída fora de um modelo determinado, que pode ser errado hoje e não amanhã, pode ser errado num país e não ser errado em outro. A culpa é um sentimento, vem de nós, vem da crença de que é errado errar, que não podemos errar, que devemos ser castigados pelas faltas cometidas; crença de que a cada erro deve corresponder necessariamente um castigo, de que a cada falta deve corresponder uma punição. Aliás, o sentimento de culpa é a punição que damos a nós mesmos pelo erro cometido. Não é possível não errar, o erro é inerente à natureza humana, ele é necessário a nossa vida. Na perfeição humana está incluída a imperfeição. Só crescemos através do erro.

As pessoas confundem assumir o erro com sentir culpa. Assumir o erro é aceitar que erramos, é nos responsabilizarmos pelo que fizemos ou deixamos de fazer. Mas quando acreditamos que a culpa decorre do nosso erro, tentamos imputar a outros a responsabilidade dos nossos erros, numa tentativa infrutífera de acabar com a nossa culpa.

A propósito do erro, há um texto interessantíssimo no livro "Buscando Ser o que Eu Sou", de Ilke Praha, que diz: "O perfeccionismo é uma morte lenta. Se tudo se cumprisse à risca, como eu gostaria, exatamente como planejara, jamais experimentaria algo novo, minha vida seria um repetição infinda de sucessos já vividos. Quando cometo um erro vivo algo inesperado. Algumas vezes reajo ao cometer erros como se tivesse traído a mim mesmo. O medo de cometer erros parece fundamentar-se na recôndita presunção de que sou potencialmente perfeito e de que, se for muito cuidadoso, não perderei o céu. Contudo, o erro é uma demonstração de como eu sou, é um solavanco no caminho que tracei, um lembrete de que não estou lidando com os fatos. Quando der ouvidos aos meus erros, ao invés de me lamentar por dentro, terei crescido". Este é o texto.

Algumas pessoas nos perguntam: "Mas como avançar em relação a este sentimento, como arrancar de mim este hábito de me deprimir com os erros cometidos?". Só existe uma saída para o sentimento de culpa. Façamos uma fantasia: imaginemos por um instante que estamos à morte e nossos sentimentos deste momento são de angústia, tristeza e frustração por todos os erros cometidos, por tudo o que deveríamos ter feito e não fizemos; remorsos pelos nossos fracassos como pai, como mãe, como profissional, como esposo, como esposa, como religioso, como cidadão, mas, ao mesmo tempo, estamos com um profundo desejo de morrer em paz, de sair desse processo íntimo de angústia e morrer tranquilos. Qual a única palavra que, se pronunciada neste momento, sentida com todo coração, teria o poder de transformar a nossa dor em alegria, o nosso conflito em harmonia, a nossa tristeza em felicidade? Somente uma palavra teria essa magia. A palavra é: Perdão.

O Perdão é uma palavra perdida em nossa vida. O primeiro sentimento que se perde no caminho da loucura é o sentimento de perdão, o sentimento de auto-perdão. Se a culpa é a vergonha da queda, o auto-perdão é o elo entre a queda e o levantar de novo. O auto-perdão é o recomeço da brincadeira depois do tombo: "Eu me perdôo pelos erros cometidos, eu me perdôo por não ser perfeito, eu me perdôo pela minha natureza humana, eu me perdôo pelas minhas limitações, eu me perdôo por não ser onipotente, por não ser onipresente, por não ser onisciente, eu me perdôo por...". O perdão é sempre assim mesmo, é pessoal e intransferível.

O perdão aos outros é apenas um modo de dizermos aos outros que já nos perdoamos. Perdoarmo-nos é restabelecer a nossa própria unidade, a nossa inteireza diante da vida, é unir outra vez o que a culpa dividiu, é uma aceitação integral daquilo que já aconteceu, daquilo que já passou, daquilo que já não tem jeito; é o encontro corajoso e amoroso com a realidade.
Somente aqueles que desenvolveram a capacidade de auto-perdão conseguem energia para uma vida psicológica sadia. A criança faz isto muito bem. O perdão é a própria aceitação da vida do jeito que ela é, nos altos e nos baixos. O auto-perdão é a capacidade de dizer adeus ao passado, é a aceitação de que o passado é uma fantasia, é apenas saber perder o que já está perdido. O auto-perdão é um sim à vida que nos rodeia agora, é uma adesão ao presente, à única coisa viva que possuímos, que são nossas possibilidades neste momento. Não podemos abraçar o presente, a vida, o passado e a morte ao mesmo tempo. O perdão é uma opção para a vida, o auto-perdão é a paciência diante da escuridão, é o vislumbre da aurora no final da noite. O auto-perdão é o sacudir da poeira, é a renovação da auto-estima e da alegria de viver, é o agradecimento por sabermos que mais importante do que termos cometido um erro é estarmos vivos, é estarmos presentes.

Para encerrar este tema, quero sugerir-lhes uma reflexão sobre este texto escrito por Frederick Pearls: "Que isto fique para o homem! Tentar ser algo que não é, ter idéias que não são atingíveis, ter a praga do perfeccionismo de forma a estar livre de críticas, é abrir a senda infinita da tortura mental.

Amigo, não seja um perfeccionista. Perfeccionismo é uma maldição e uma prisão. Quanto mais você treme, mais erra o alvo. Amigo, não tenha medo de erros, erros não são pecados, erros são formas de fazer algo de maneira diferente, talvez criativamente nova. Amigo, não fique aborrecido por seus erros. Alegre-se por eles, você teve a coragem de dar algo de si".

(*) Antônio Roberto Soares é autor dos livros "É possível ser feliz" e Relacionamentos".

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