domingo, 19 de julho de 2015

A Outra


Levava a pequena criança pela mão, atravessava o mar de carros na avenida e voltava pra casa. Era assim todas as manhãs e à tarde. Não questionava.
Depois, bebia o chá, comia o bolo e sonhava: agora sou outra.
Feira, açougue, padaria. Fogão, máquina de lavar. Mas hoje, hoje vai ser diferente. Porque agora sou outra.
Coloca o vestido decotado, calça o sapato de domingo, passa o batom e o perfume emprestados, e sai para encontrar seu amor.
No caminho, alimenta o sonho: agora sou outra.
O coração, acelerado, lugar-comum dos apaixonados, quase pára com as lembranças das cenas na sala de estar da casa da melhor amiga. Foram beijos obscenos, pegação, esfrega-esfrega e a promessa de Jurandir: quero te comer todinha. Me liga. Era sua primeira vez como a outra. Mas que importa? Agora sou mesmo outra.
E no local combinado, assenta o corpo na cadeira do café. Pede um cappuccino e suspira enquanto deseja o marido da amiga, um gostoso tão diferente daquele indigente, pai de sua filha.
Meia-hora, uma hora...finalmente...o encontro naufragado. Os olhos choram por dentro. O que eu fiz de errado? Agora não sou a outra?
Travestida de indiferença, paga a conta pro garçom que, acostumado, adivinha o desfecho do enredo. Mas, não, com ela, não. Afinal, agora ela era outra.
Volta pra casa, se arrasta. Depois, pega a criança pequena pela mão, atravessa de volta o mar de carros e em casa faz sopa de letrinhas. Mistura lágrimas à salsinha, coloca ração para o gato, água para o periquito, tira a roupa do varal... enquanto pensa: agora sou outra mulher.

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