
Cuidava da nossa saúde, sempre atento a espirros e tosses, febres e diarreias. Nos medicava com fitoterápicos. Era adepto à homeopatia. Queria ter sido médico - sua maior frustração -. Não deu. Com pouco mais de 14 anos teve de sustentar a mãe e mais 9 irmãos menores com a morte prematura do pai - um jornalista boêmio que não se ligava muito em contas e outras obrigações. Herança do avô e do bisavô. Todos jornalistas e boêmios (como a maioria de seus irmãos).
Assim, contam as histórias. Meu pai não foi jornalista, mas adorava ler jornais, lia uns três por dia e eu cresci ali no meio daqueles jornais todos, e discos (ele adorava ouvir música sozinho na sala, na penumbra, e eu já me vi fazendo assim tantas e tantas vezes na minha vida), e livros, prateleiras e prateleiras deles, de todos os gêneros. Meu pai achava que a gente tinha de saber um pouco de tudo, além do que a escola ensinava. Meu interesse pelas civilizações antigas, papiros e pergaminhos vem daqueles livros enormes sobre egípcios, tumbas e faraós, e também um pouco porque ele era da Rosa Cruz - e às vezes eu lia escondida o material da Ordem que ele guardava a sete chaves num baú de madeira.
E a escrivaninha dele? Era meu xodó. Mas deu cupim, não conseguimos salvar.
Ele lutou na Revolução de 1932 - foi "pracinha". Tinha um parabelo e um capacete verde do exército como lembrança. Sentia orgulho de São Paulo ter-se rebelado contra o governo golpista de Getúlio Vargas. Era contra a ditadura mas não era a favor dos comunistas. Contra todo tipo de tortura e violência, como não tinha papas na língua, quando saía para trabalhar ficávamos com medo de ele ser preso porque ele não escondia de ninguém que abominava o governo militar, embora não fosse comunista! Ele sempre deixou clara sua admiração e respeito pelo povo russo, mas achava que ser contra o governo militar não fazia dele um comunista.
Tenho boas lembranças de papai nos almoços de domingo, quando a família invariavelmente se reunia, e em festas nas casas de parentes. E em viagens. Papai gostava de viajar. Nunca teve carro, mas isso não era problema. Tinha um amigo taxista que nos levava até a rodoviária em São Paulo (onde hoje é a cracolândia) e de lá pegávamos o ônibus para Itamonte, em Minas, na bela Serra da Mantiqueira - ponto de partida para passeios no circuito das águas: Caxambu, São Lourenço, Baependi. Outro roteiro de férias era Guaratinguetá, no Vale do Ribeira, onde ele havia passado parte da adolescência e juventude e onde ainda moravam bisavó e tias que fizeram parte de momentos importantes de minha infância. Talvez seu maior defeito fosse beber além da conta quase todos os dias. Mas não ficava agressivo. Chorava se estivesse triste, lamentando sua adolescência interrompida - , ou se estivesse alegre, cantava junto com os discos que ouvia. Arriscava dançar nos melhores dias.

Meu pai achava que o casamento devia ser a última opção de vida. "Primeiro faça e viva tudo que tem vontade. Conheça lugares, pessoas, tenha experiências..." - era seu mantra. Ele se casou depois de todas irmãs e irmãos se casarem e depois dele ter namorado todas que teve vontade até que conheceu minha mãe. Ele não achava que eu tinha de me casar. Antes, estude, trabalhe... Infelizmente eu não o ouvi - como em geral fazem todos os filhos. Fiz tudo junto e misturado.
Pena que ele morreu cedo. Ele fez (faz) muita falta. Eu mal havia me casado (a primeira vez). Então, meus filhos não tiveram a oportunidade de conviver com esse homem possível, cheio de qualidades e de defeitos, que tinha dias bons e outros nem tanto. Não era santo nem demônio. Era apenas o pai que me coube nesta vida.
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