domingo, 23 de outubro de 2016

Menta com romã

Inspirada na Lei Maria da Penha, que completa 10 anos, e no sofrimento impossível de nomear das milhares de mulheres que são agredidas sob diversas formas, saiu o texto a seguir.

"Depois de espirrar o própolis sabor romã com menta na sua boca, Matilde engoliu a seco como sempre fizera.
Minutos antes de sentir a fisgada da inflamação na garganta, como se um anzol enganchasse nas suas amídalas, ela ouvira um "cala essa sua boca", que a pegou de surpresa, como um soco do boxeador no adversário distraído.
Não quis acreditar que aquele "cala a sua boca" tivesse sido desferido pelo seu preferido.
Melhor fingir que a grosseria fora desencadeada por absoluta falta de escolha mais adequada de palavras?
Mas Matilde se acostumara às grosserias. Todos os seus relacionamentos acabaram em violência verbal ou física. Essa maldita força demoníaca era invocada inconscientemente e arrastava tudo o que estava ao redor. Vivera assim, no olho do furacão.
Ela, Matilde sabia: vai começar tudo outra vez. Ela, de novo, se posicionava ali, no altar do sacrifício, pronta para a degola. Sabia que seria acusada de provocar a ira dos deuses e sentiria a culpa cotidiana. E pediria perdão por ser assim.
Essa era sua marca tatuada na alma. Enquanto o som do recente "cala essa sua boca" ardia ainda nos recantos do canal auditivo, Matilde pensava: esse não era um cala a boca qualquer.
Desta vez seria um "cala essa sua boca" definitivo. O primeiro e o último dessa relação tobogã.
Tinha gosto de ponto final sabor menta com romã." 


(Lady Lou - 23/10/2016)

domingo, 24 de abril de 2016

Essa sua canalhice

Não tem como. Hoje vou dar um fim em tudo. Essa sua miserável apatia me enlouquece.
Acendi um incenso pra ter pelo menos um cheiro bom no ar.
Coloquei mais açúcar na caipirinha pra ter um doce pra sentir.
Outro dia você me trouxe flores. Até chorei, lembra? Mas os chocolates....dei pro cachorro depois de saber das tantas outras presenteadas... Eu sei, você disse, você sempre diz: elas não importam.
Mas essa sua miserável inércia...
Não tem como. Hoje vou ter de dar um fim.
Liguei o ventilador pra ter mais ar.
Traguei a fumaça do charuto pra esquentar o peito vazio. Você deixa ele assim.
Naquele dia, você me deu o anel, lembra?
Eu te beijei por cinco minutos, boca, rosto, olhos, nariz... e você ria, ria... Estava feliz. Mas as cartas... dei pra reciclagem depois que encontrei as trocadas com tantas outras...
Eu sei. Você disse. Você sempre diz. Elas são nada!
Mas essa sua miserável presença...
Não tem como. Hoje vou ter de dar um basta.
Já deixei tudo pronto: martelo, cutelo, câmeras desligadas, as malas.
Quando você chegar com sua sedução eu vou te embriagar com aquele vinho, você sabe qual, aquele do encontro, o único que valeu a pena...por que pegaria um avião?...você disse, você sempre diz.
Tirei as crianças de casa e liguei o som.
Quando você dormir nos meus braços - sim, você vai adormecer feito um príncipe, como sempre, aninhado depois do amor, nos meus seios - nessa hora, vou dar um fim em tudo. Não tem como.
Essa sua miserável canalhice me excita.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Partiu maternidade

Há 30 anos nascia Iara. Iara foi concebida de propósito, de caso pensado. Parei de tomar pílula quando voltamos da "lua de mel" de Olinda/Recife/Salvador. Hoje eu entendo o que minha ex-chefe de redação quis dizer com "vocês não têm um lugar mais nobre para passar a lua de mel, em algum país da Europa, por exemplo?" E olha que ela era do "partidão", hein, e com essas ideias burguesas....Pois é dona Luzia, quase 30 anos depois eu estive na Europa, sozinha, sem marido pendurado, graças a essa menina fruto da abstinência anticoncepcional. Ela estava morando num dos países mais prósperos do Velho Continente e eu fui visitá-la. Se não tivesse jogado fora a cartelinha...nada de Suécia!
Eu era fértil, paca! Parei num dia, no outro, pimba! Mas apesar dos meus, apenas, 26 anos, foi uma gravidez de risco. Tive ameaça de aborto aos 5/6 meses e precisei ficar em repouso absoluto até o nono. Claro, que esse absoluto não foi tão absoluto assim, mas cheguei até o fim com o barrigão. Assim mesmo ela, apressadinha como sempre, nasceu sem completar as 38 semanas de praxe. Aliás, quase nasceu no táxi. Era domingo de Carnaval. Nada de celulares ou de whatsapps naquela época, meus caros. O obstetra me garantiu que não ia viajar. Mas não podia prever um parto num domingo folião. Então passamos o dia tentando localizá-lo.
Lotamos o pager dele de recados. Secretária eletrônica idem. Isso desde as dez da manhã quando as contrações começaram. No início não dei bola. Afinal, passei a maior parte do tempo com elas...até que a bolsa estourou. Pânico geral. Nada de encontrar o doutor. Quase 12 horas depois conseguimos contato. Estava no sítio da sogra. Me mandou correr para o hospital. Óbvio que correr era uma figura de linguagem. Eu mal conseguia parar em pé, mas também não conseguia parar sentada. Finalmente, "partiumaternidade".
A "corrida" não foi fácil. O táxi não era nenhum Uber, gente. Anos 80...era uma carroça qualquer. Todos os carros eram ruins se comparados aos que existem hoje. O que mudava era que os mais novos eram menos piores. Mas esse não era o caso daquele táxi. A sorte é que pelo menos o taxista era educado e cuidadoso ao dirigir, artigo raro nos dias atuais.
A Maternidade foi a São Paulo, na rua Frei Caneca. Na época, ainda uma rua classuda. 
Iara não esperou muito. Às 23h45 deu o ar da graça. Parto normal, sem dor, com peridural e tudo. Até hoje algumas pessoas se espantam: mas no século passado, parto normal com anestesia??? Oui, chérie. Meu médico era "prafentex" e tinha o mesmo nome de um dos autores da literatura brasileira que eu mais admiro e me inspiro: Nelson Rodrigues.
Parto normal é ótimo! Você sai andando serelepe assim que termina o efeito da anestesia. Sem dor, sem incômodos. O leite desce facinho e o bebê fica feliz. Você dorme tranquila - sem cortes - e acorda disposta.
Retoma rapidinho seu manequim anterior à gravidez e logo entra naquela calça jeans, justinha, azul e desbotada. Coloca seu rebento no carrinho e vai orgulhosa passear na pracinha ou no play. E faz o maior sucesso! Eu fiz!

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Um circo de percalços falsos - Guia para a bibliotecária das galáxias

Capa do livro criada por Teo Adorno

Para você que lê e curte Repertório Feminino experimente o blog Um circo de percalços falsos - Guia para a bibliotecária das galáxias

https://umcircodepercalcosfalsos.wordpress.com/2016/01/26/xengo-delengo-tengo/

Trata-se de um projeto literário coletivo que nasceu dentro da Oficina Cultural Casa Mário de Andrade sob o coordenação do escritor Luiz Bras, que também participa com contos de sua autoria.
O projeto - uma coletânea de contos em torno de um tema comum, sobre o qual os autores se debruçaram, gira em torno de um universo fantástico, o nono andar da Biblioteca Mário de Andrade e as aventuras dos personagens Manu, a bibliotecária, e os demais - virou livro.
Enquanto o livro não vem, os autores criaram esse blog alimentado com outros contos do mesmo tema, mas que ficaram de fora do livro.
O mais interessante desse projeto é que o blog pode ser alimentado com contos de outros autores que não fazem parte originalmente do projeto, mas que identificados com a proposta de criação coletiva, ou mesmo com o tema da literatura fantástica, se sintam motivados a participar. Nesse caso, basta escrever o texto e submetê-lo para a editora, informação que pode ser facilmente encontrada no próprio blog.
Bom, chega de papo.
O bom mesmo é você ir correndo lá.
Xengo-delengo-tengo é de Lady Lou, meu alterego para o projeto.
Já temos quatro contos, além do texto de abertura, escrito por Luiz Bras, que explica muito melhor o que é o universo compartilhado, 
Boa degustação!

Pajelança das letras

Você que lê e curte Repertório Feminino, experimente também Pajelança das Letras.

http://aladylou.blogspot.com.br/

Tem outra pegada, mais literária, ainda que não tenha pretensão de, serve como um laboratório para meus escritos.
Te espero lá!

domingo, 15 de novembro de 2015

Freud explica por que não suportamos mais tanta violência

Foto by CHRISTIAN HARTMANN (REUTERS)
No início dos anos 1930, o Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual foi orientado pelo Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações a promover trocas de correspondências entre intelectuais de renome abordando temas de interesse geral. Foi assim que Einstein foi convidado a escrever uma carta para alguém e ele escolheu Freud como seu interlocutor.

Dessa troca nasceu um dos textos mais bonitos de Freud. Sob o título Por que a guerra? (Warum Krieg?), resumidamente, Einstein indaga a Freud "se seria possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade?"

Freud precisou de mais de 10 páginas para responder à questão do físico alemão, nas quais ele fala sobre a trajetória da violência na humanidade, entre outras coisas, mas principalmente sobre ser uma ilusão desejarmos um mundo como o sonhado por John Lennon em Imagine.

Vou transcrever alguns trechos da carta, porque entendo que têm tudo a ver com o atentado de Paris e com todos os outros atentados à vida de um modo geral. Mas recomendo que quem tiver interesse, leia-o na íntegra porque, além de bonito, nos ajuda a entender porque não suportamos mais tanta violência. (o texto pode ser encontrado no volume 22 das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. da Imago)

O poder dos grupos ideológicos
"Uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força coercitiva da violência e os vínculos emocionais (identificações é o nome técnico) entre seus membros. Se estiver ausente um dos fatores, é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator. As ideias a que se faz o apelo só podem, naturalmente, ter importância se exprimirem afinidades importantes entre os membros, e pode-se perguntar quanta força essas ideias podem exercer". Me parece que este trecho tem tudo a ver com o Estado Islâmico, mas igualmente com outros grupamentos como torcidas uniformizadas, partidos políticos etc.

Por que escolhemos a violência
(...)"quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar - uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. Não há por que enumerá-losa todos. Entre eles está certamente o desejo da agressão e destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida de todos os dias atestam a sua existência e a sua força (...) quando lemos sobre as atrocidades do passado, amiúde é como se os motivos idealistas servissem apenas de desculpa para os desejos destrutivos(...)." Nada mais atual, não?

Sociedades sem violência
(...)" de nada vale tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens. Segundo se nos conta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre em meio à tranquilidade, povos que não conhecem nem a coerção nem a agressão. Dificilmente posso acreditar nisso, e me agradaria saber mais a respeito de coisas tão afortunadas. Também os bolcheviques (e todo tipo de comunistas, socialistas, esquerdistas e radicais afins) esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o estabelecimento da igualdade, em outros aspectos, entre todos os membros da comunidade. Isto, na minha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hoje em dia, estão armados da maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além de suas fronteiras.(...)" Qualquer semelhança com situações mais contemporâneas não é mero acaso. Ah! O itálico entre parênteses é meu!

Faça amor, não faça a guerra
"Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. (...) a psicanálise não tem motivo porque se envergonhar se nesse ponto falar de amor, pois a própria religião emprega as mesmas palavras: 'Ama a teu próximo como a ti mesmo'. Isto, todavia, é mais facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala."

Líderes e liderados
(...)"um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos liderados. Estes últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria, devotam uma submissão ilimitada. Isso sugere que se deva dar mais atenção do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de intimidação e desejos de manter-se fiel á verdade, cuja preocupação seja a de dirigir as massas dependentes."

Por que nos revoltamos contra a guerra?
(...)" porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade.(...) Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldade em encontrar argumentos que justifiquem nossa atitude."

Quanto mais civilizado menos propenso à guerra
"Durante períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de evolução cultural ((...) 'civilização'). É a esse processo que devemos o melhor daquilo que nos tornamos, bem como uma boa parte daquilo de que padecemos. (...) As modificações psíquicas que acompanham o processo de civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos fins instintuais e numa limitação imposta aos impulsos instintuais. Sensações que para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais éticos e estéticos. Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais importantes: o fortalecimentos do intelecto, que está começando a governar a vida instintual, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas consequentes vantagens e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não é apenas um repúdio intelectual e emocional; nós os pacifistas, temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau. Realmente parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades. (...) E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. (...) Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra."



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Coração albergue



não precisa entender tanto faz a ordem quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é despedaçar palavras cortar em várias partes esquartejar e fazer você engolir fração por fração até ser um inteiro completo desse amor fragmentado que eu teimo em cultivar todos os dias desde sempre desde quando nem havia a luz nem o verbo e se fez a dor que só os poetas entendem e você teima em dizer não existe é coisa do imaginário mas a minha é palpável é sanguinolenta malcheirosa putrefata e está à deriva à tona descoberta e você ignora ou finge e nessa hora salto no abismo desse desejo hermético obscuro inerte como as estrelas já mortas do universo vomitando os excrementos da saudade do seu toque nessa distância de anos luz que faz do nosso amor o mais antigo que invadiu meu coração quando me apaixonei pelas palavras não ditas pelas entrelinhas pelos escaninhos do tempo meu querido meu amigo desde sempre desde antes da criação do cosmos vou te amar aqui e morar em seu coração albergue que abriga todos os desvalidos inclusive eu entrei assim como um sem chão e você me deu de beber dos seus beijos me deu de comer do seu corpo  fui ficando e agora tenho direitos adquiridos por usucapião a sua ração diária de carinhos no café da manhã almoço e jantar petiscos de sexo nos intervalos meu amor talvez o que você nem saiba é que agora seu sangue circula no meu sistema na velocidade acelerada das manhãs apocalípticas do meu entardecer e antes que o sol se ponha definitivamente anote mais uma vez o que fica eu te amo mas não precisa entender tanto faz a ordem quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é despedaçar palavras cortar em várias partes esquartejar e fazer você engolir fração por fração até ser um inteiro completo desse amor fragmentado coisa do imaginário desde sempre desde quando nem havia a luz nem o verbo desde antes da criação do cosmos você teima em dizer não existe pelas entrelinhas pelos escaninhos do tempo você me deu de beber dos seus beijos me deu de comer do seu corpo  fui ficando e agora tenho direitos adquiridos por usucapião a jantar petiscos de sexo nos intervalos desse desejo hermético obscuro inerte como as estrelas já mortas vomitando os excrementos da saudade do seu toque vou te amar aqui e para sempre morar em seu coração albergue que abriga todos os desvalidos inclusive eu entrei assim como um sem chão mas não precisa entender tanto faz a ordem quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é te amar aqui e para sempre morar em seu coração albergue coisa do imaginário do meu entardecer quando nem havia a luz nem o verbo salto no abismo à deriva vomitando sanguinolenta malcheirosa putrefata quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é despedaçar palavras anote mais uma vez o que fica eu te amo

domingo, 2 de agosto de 2015

Sons noturnos

Você sabe que está com insônia. Tenta dormir e não consegue. 
Pra que insistir? Levanta logo dessa cama, porra. Essa maldita aí do seu lado ronca feito uma porca. Que nojento. Falar assim da mãe dos meus filhos. Mas é o que ela é hoje. Uma porca lazarenta, gorda, com mau-hálito. E ronca! Maldita insônia, hein? Quem mandou ir deitar mais cedo? Você já sabe que quando faz isso acorda no meio da noite com a geringonça ruminando do seu lado. Tenta dormir, vai. Fecha os olhos, reza, tenta se concentrar num único pensamento, lembra de um mantra! Não funciona. Não funciona? Como assim? Não é você o budista paz e amor? Isso. Rola de um lado pro outro. Acende a luz, bebe um pouco da água que está no copo do criado-mudo. Apaga a luz, afofa o travesseiro, e deita a cabeça sorrindo feliz e pensa: agora, vai.
Fecha os olhos, mantra – oh, mani padme rú, oh mani padme rú -, reza, sua frio, que calor da porra, joga a coberta no chão, ouve a moto que sobe a rua, o guarda-noturno apitando no final do quarteirão...lá longe, o trem de carga que passa discreto no silêncio da noite. E a mente? Um turbilhão. Milhões de pensamentos. Caralho, que saco! Agora você não sabe mais se está acordado ou dormindo porque tem a sensação de que está sonhando, mas ao mesmo tempo ouve todos os sons noturnos. Os estalidos dos móveis, e o ronco da megera, claro. Dá uma cotovelada na infeliz. Não adianta. Não adianta os cambaus. No mínimo ela se vira de lado e diminui a sinfonia. O vizinho da casa ao lado se levanta para ir ao banheiro. Pela hora deve ter dado uma na mulher e agora foi se lavar. Na sequência vai ela. Parede fina do cacete. Da pra ouvir os caras no banheiro, que inferno. Fiquei de pau duro. Mais essa agora. Vai levantar? Nem tenta. Fica deitado. Larga o celular, imbecil. Conferir que horas são nesses casos só piora a sensação de impotência diante do seu desejo de dormir e do cérebro que teima em permanecer acordado.
Puta que o pariu eu preciso dormir. Levanto cedo amanhã. Amanhã? Cê tá de gozação. Num tá ouvindo o primeiro ônibus passar na rua de cima? O primeiro pio do bem-te-vi? Jesus, me ajuda! Você acabou de descobrir que tá há quatro ou cinco horas acordado quando deveria ter dormido. Bate um desespero infernal, não é? Você tinha um compromisso logo pela manhã? Fudeu. Não tem remédio mesmo. Que luz é essa que vem da janela? Espera um pouco. Não acredito. Já amanheceu? E eu aqui acordado??? Não dormi a noite toda! Não, por favor, não, não pode ser, de novo nãããããããão...
- Antônio Carlos! Antônio Carlos!!
- Hã? Que foi Maria Amélia, que foi?
- Que saco! Para de gritar. São três da manhã! Me deixa dormir. Acho que você tava sonhando.
- Sonhando? Então...eu tava dormindo?

(Lourdes Maria – 21/07/15 )

Boca a penas: OITO PERGUNTAS A PENAS com BIANCA VELLOSO

Boca a penas: OITO PERGUNTAS A PENAS com BIANCA VELLOSO: Bianca Velloso nasceu gaúcha, na capital do Rio Grande do Sul, em novembro de 1979. Filha de uma médica ginecologista e d...

domingo, 19 de julho de 2015

E se fizer frio...azar


Ela me olha com os olhos pequenos rodeados de ruguinhas de expressão, pele bem judiada, entre surpresa e desconfiada quando me aproximei explicando minhas intenções. Ela era uma senhorinha baixinha e, muitas vezes, menor que a placa de 2 ou 3 dormitórios, lançamento venha conhecer que segurava com as mãos pequenas. Sabe aquelas pessoas que ficam paradas nas esquinas das ruas tomando conta de placas com propagandas de empreendimentos imobiliários nos fins de semana? Então. Sempre vejo essas pessoas ali paradas o dia todo em pé. Homens e mulheres de todas as idades. Cruzo com elas logo cedo quando vou pra São Paulo de trem, no sábado. Na volta, à tarde, estão lá ainda.
Sempre quis saber quem são essas pessoas, como vivem. Criei coragem e falei com a senhorinha. Apesar de surpresa pelo meu interesse, acabou me contando que mora bem longe, na Zona Leste, que pega ônibus, metrô e trem até um trecho onde se encontra com outros da turma que cobre aquela região. Uma van dirigida por um sujeito que funciona como um capataz (a expressão é minha, ela não disse isso) traz até ali. Ele dá ordens, explica o que pode e não pode, na hora do almoço leva os marmitex – que são consumidos ali mesmo, no chão das calçadas – e faz o pagamento no fim do dia.
E pra fazer suas necessidades? Ah, dona, a gente conta com a boa vontade das pessoas das casas ou de algum comércio por perto. E quando chove? Bom, se chover muito a gente é dispensada. E se fizer muito frio... azar. Ou torra no sol. E não pode deixar a placa cair nem ficar torta. Quando venta é pior porque tem de fazer força pra segurar a danada no lugar. Também não pode ficar de papo com as colega, nem sentar no chão. O certo é ficar em pé. Só que cansa, né? Aí a gente senta e reza pro fiscal não ver porque se ele pega a gente sentada vem bronca, desconta a diária sabe? A diária é trinta real. Dá um total de 60 no fim de semana. Mas eles descontam a marmitex e a condução de casa até a van é por nossa conta. No fim, não sobra muito, mas fazer o quê, né dona? Não tem muita escolha. Tô velha. Tenho pobrema de coluna. Nem faxina dá pra fazer.
A plaqueira tem três filhos pequenos (duas meninas e um garoto) e mora com a mãe de quase 70. Faz outros bicos durante a semana. Emprego, emprego mesmo de verdade nunca teve. Os seus 48 anos aparentam mais. Só estudou até o quinto ano – não sabe até quando vai conseguir segurar placas nas ruas em pé oito horas seguidas. Mas, por enquanto, é essa placa, que ela segura com firmeza apesar de sua figura frágil, que lhe dá algum alento.

Engraçadinha, mas...


Não tenho inimigos. 
Apenas desafetos
Afetados pelo próprio
(Des) afeto.

Deixando o Rancor de Lado: Cultivando a Liberdade Interior

O   rancor é um sentimento negativo que pode prejudicar nossa saúde mental e nossos relacionamentos. Abaixo, apresento algumas estratégias ...