quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O abismo que nos une

Sempre que alguns amigos a convidavam para sair e se divertir lá vinha a sensação de culpa. Primeiro a obrigação, segundo a obrigação, terceiro, a obrigação. Sem sofrimento não há progresso. Assim educaram a minha amiga Wal. Então, naquela tarde os colegas de trabalho a convidaram para jogar sinuca num bar da Lapa e beber umas "brejas" enquanto reencontravam outros amigos e se despediam do ano que já estava no fim.
Walkiria ficou com muita vontade. Mas....sempre o mas....e os filhos que a aguardavam em casa? e a grana que, afinal, ia gastar e que, afinal não estava assim sobrando, e...será que teria carona para voltar? Primeiro, Walkiria enxergava os empecilhos.Fora educada assim. À parte a educação, alguns outros fatos de sua vida corroboravam nesse momento para reforçar suas convicções. Errôneas e bem arraigadas. Walkiria pensou, pensou....e lembrou de uma outra época, anos atrás, que era tão feliz...saía com os amigos sem culpa apesar de os filhos serem menores, e tudo dava certo. Por conta da falta de culpa e da falta de medos bobos e infundados conhecera muitos restaurantes bacanas, participou de conversas memoráveis... Divertiu-se sem preocupação. Nessa época Walkiria tinha carro. Um carro bacaninha, quatro portas, seminovo, filmado, travas e vidros elétricos. Um carro que levava Walkiria aonde ela quisesse. Walkiria, nesses tempos, não tinha receio de passar às duas da manhã na avenida que cortava a maior favela de São Paulo. Ela ia que ia, toda faceira, cantando suas músicas preferidas. Nunca sofrera nenhum tipo de acidente, nem assalto, nem pneu furado. Nada. Ia despreocupada de volta para sua casinha com chuva ou sem chuva. Nem enchentes nem alagamentos enfrentava. Milagrosamente.Então, por que agora minha amiguinha colocava tantos mas antes de suas frases, antes de seus desejos, antes de suas vontades, antes de seus sonhos?
Seria porque justamente no meio daquela fase as coisas começaram a não dar muito certo? Ela me contou que resolvera vender aquele carro, cuja prestação estava um pouco alta para o seu orçamento, e dali a alguns meses, quando recebesse a restituição do seu Imposto de Renda, daria entrada num outro veículo, com uma prestação mais ajustada às suas contas. Porém, (e talvez por causa desse porém Walzinha adquiriu outros mas e poréns) quando chegou em casa a pé, levou um superpito de sua filha mais velha que lhe disse poucas e más sem dar a ela nenhuma chance de defesa. Mais uma vez, Wal se calara, como tantas e tantas outras vezes fizera em sua vida desde quando era bem pequenininha (só que nessa época, ela desconhecia esse sistema que só agora a terapia havia revelado). A filha despejou sobre ela todos os medos que eram dela, filha, e Wal absorveu tudo calada, pior do que calada, vexada, pior do que vexada, humilhada. Wal queria explicar: não, filha, eu vendi agora porque está difícil pagar, mas daqui a alguns meses comprou outro com a restituição do IR...mas a mocinha não deu trégua. Disse que ela não sabia conduzir a própria vida, que era irresponsável, que não planejava nada em sua vida (mas, mas, tentou dizer) e terminou com a frase que nunca mais Walkiria esquecera, a frase-sentença, a frase-guilhotina: sabe quando você vai conseguir outro carro igual a este que você acabou de vender? nunca mais!
Wal não tem certeza se a filha disse o que disse da boca pra fora, apenas no calor do desespero por ver a mãe a pé e todas as dificuldades decorrentes disso. O fato é que daquele momento em diante, como uma mágica ao contrário, sua vida foi se esvaindo, perdeu o emprego, a alegria, a segurança e a restituição, quando chegou, não pôde ser usada para comprar seu sonhado carrinho porque teve de ser usado para pagar contas e a bola de neve de azares cresceu tanto que engoliu minha amiguinha levando-a ladeira abaixo, carregando junto sonhos, vontades e desejos. Minha amiga ficou seis anos sem um emprego fixo. Foram seis anos contando moedas para comprar pão no final da tarde que garantiam não passar fome até a hora de dormir. Moedas muitas delas surrupiadas do cofrinho de moedas juntadas desde a infância por essa mesma cria que, por decreto, ainda que involuntário, talvez inconsciente e inconsequente jogou a mãe de ego frágil para o patamar mais baixo que ela poderia suportar. Seis anos dependendo da boa vontade de amigos para pagar contas, para emprestar dinheiro até para comprar papel higiênico. Seis anos se achando incapaz, incompetente, impotente. Wal se nutria do pão que o diabo amassou e como prêmio ganhou uma anemia e várias hemorragias. Para que viver? era o recado que ela dava sem ter consciência, para o universo. Para completar, o distanciamento que se deu entre elas a partir da venda do carro se tornou abissal. Oito longos anos se passaram desde então e Wal ainda não conseguiu comprar um carro, exatamente como previra sua filha. Walkiria acredita que um dia ainda vai comprar novamente um carro. E aos poucos superar o Grand Canyon que se abriu entre elas.

2 comentários:

Edna Maia disse...

Lindo texto..parece até que conheço a personagem..aliás tem tantas parecidas não é mesmo, quem de nós não passou ou passa por isso. Mas com certeza são lições de vida pra pensar e repensar...parabéns seus textos são muito bons...acho que uma nova escritora está no ar....bjs.

Lady Lou disse...

Obrigada, amiga! Os escritos fazem parte de um trabalho pessoal de liberação da intuição. Sou muito racional, lógica e preciso liberar minha criatividade. Fico muito feliz quando alguém como você gosta do que lê e até se identifica.
Adoro seus comentários! Bjo!

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